sexta-feira, 8 de junho de 2012



                                                                A LUTA PELA BARBÁRIE
                     (“O bárbaro é, antes de tudo, o homem que crê na barbárie” – Claude Lévi-Strauss)

“Quando um tempo vier não mais empanado pela sombra da consciência da própria culpabilidade, a conservação de si mesmo criará a tranqüilidade íntima, a força exterior, brutal e sem considerações, para matar os maus rebentos da erva ruim.”

A frase acima, registrada na história do século XX, parece cair como uma luva para os tempos atuais, quando alguns, por diversos motivos, defendem que agentes do Estado executem sumariamente criminosos, sem que lhes seja permitido um julgamento justo, segundo as leis vigentes no país, uma República Democrática de Direito.
Alguns argumentos apresentados como sustentáculo para tais execuções são já conhecidos, entre os quais “bandido bom é bandido morto” etc.
Evidentemente que as discussões sobre a eficácia das leis atuais ou sobre a eficiência do sistema carcerário são válidas, assim como é importante apontar as causas da atual insegurança pública e a inigualável capacidade do Estado brasileiro de estrutura um real e eficaz sistema punitivo e também restaurador.
Contudo, um antigo postulado, fruto de duras conquistas da civilização tem lugar num regime democrático: a de que “todos” os cidadãos têm direito a um julgamento justo, no qual assegurado a plena e ampla defesa.
Por mais que um crime nos deixe chocados; por mais cruel que se revele um indivíduo ao cometer um delito, ainda assim é necessário que sejam observadas as leis processuais, a lei penal, bem como a Constituição da República.
Esse tema foi objeto de árduas discussões entre as potências ocidentais vencedoras da segunda guerra e a URSS: esta, por força da vontade de Josef Stalin, um dos maiores genocidas da história, desejava apenas reconhecer o grau de culpa e a punição adequada à cúpula nazista em Nuremberg;
Os ocidentais desejavam ofertar aos nazistas um julgamento justo, exatamente para que as punições a serem impostas aos criminosos de guerra não ficassem manchadas pela história como mera vindita.
Mais ainda: absolutamente “todos” os indivíduos são “seres-humanos”, por mais que a clássica visão fascista busque reificar tais indivíduos, tirando-lhes suas características humanas. Assim fez o nazismo (associou os judeus a “ratos”); assim fez o regime extremista hutu (associando os tutsis a “baratas” etc.), entre inúmeros outros exemplos.

Não buscamos a impunidade, mas apenas o reconhecimento de que o Estado, que detém o monopólio da força, seja também o único aplicador das leis e da justiça. Buscamos construir uma verdadeira nação com instituições das quais nos possamos orgulhar.

As leis são ineficazes e a sociedade sente-se insegura ? Então, que a sociedade se mobilize para o que é realmente importante e pressione os parlamentares do país a editar normas mais adequadas aos tempos atuais; leis mais rígidas e um sistema prisional eficiente. Mas, sempre com a prévia lei vigente, estabelecendo condutas e as respectivas punições.

Quantos daqueles que pregam execuções sumárias se lembram em quem votaram, nas últimas eleições parlamentares ? Afinal, são eles que editam nossas leis, lembram-se ? Recordam-se das reflexões de Montesquieu e Aristóteles sobre a divisão dos Poderes ?

Nós nos lembramos bem.

Porém, pregar a execução sumária daqueles considerados criminosos antes de qualquer julgamento justo, por homens uniformizados, com o intuito de “limpar” a sociedade, constitui a forma mais elementar de fascismo; traduz a mesma conduta que a história revelou como o caminho mais evidente para a execução de outras categorias. Conduz à guerra.

Mais ainda: aquele que defende tal ideia está pregando e colaborando para a existência de privilégios – afinal, se um dia um filho seu ou qualquer outro ente querido for acusado da prática de um crime, certamente dirá que referido acusado – seu filho - terá direito à ampla defesa e ao contraditório.
Se algum cidadão tem direito a tais garantias, “todos” as têm.
Não abordamos aqui situações de morte de criminosos que enfrentam a Polícia numa troca de tiros; tampouco do pai ou da mãe que consegue reagir a um assalto ou sequestro e mata seu algoz, situações tais típicas de legítima defesa, já de há muito admitida em lei.
Pensamos, sim, na execução de um marginal já sob o domínio de agentes do Estado-administração e que devem, a partir daí, serem entregues ao Estado-juiz.
A verdadeira origem de nossos problemas, entre os quais aquele relativo à segurança pública, pode ser encontrada na conduta de nossos políticos, que desde o início da República jamais atuaram por amor ao Brasil, salvo raríssimas exceções.
Afinal, quem permitiu o incremento de tamanha insegurança social ?

Não se constrói uma nação com base no medo e na violência; é primária a alegação de que se deve combater fogo com fogo; olho por olho. Já há longo tempo dizia Mahatma Ghandi que “olho por olho e o mundo acabará cego”.

A mais pura verdade e vinda de um homem que libertou seu país do império britânico, por meio da doutrina da “não-violência”.

Violência apenas gera mais violência.
Uma nação, um país de verdade somente se constrói com instituições fortes, leis eficazes, homens públicos comprometidos e, especialmente, com a preservação da democracia, além da participação de seu povo.
Não é o caso dos brasileiros, desinteressados que são da política mas que, depois, com o leite derramado, apenas reclamam e pedem, como no caso presente, que se rasgue a Constituição do país.
Defender ações de extermínio e execuções significa igualar o defensor de tal ideia ao criminoso; traduz a clara opção por uma sociedade marcada pelos privilégios, pelo totalitarismo e pela barbárie.
Já observara Claude Lévi-Strauss que “o bárbaro é, antes de tudo, o homem que crê na barbárie” (“Race et Histoire, Paris, Gallimard, “Folio Essais, 1987, p.22, citado por Jacques Sémelin em “Purificar e Destruir – Usos Políticos dos Massacres e dos Genocídios”).

Quem defende execuções sumárias, crê na barbárie; defende-a. Durante tal processo e após ele, posa de vítima. Isso, nos dias atuais, não é mais admissível.

Reitere-se: não abordamos aqui situações já albergadas em lei.
A sociedade brasileira está insegura e amedrontada; logo, parte para soluções radicais e violentas. Parece desejar mais sangue para estancar justamente sua hemorragia social. O ódio nasce do medo.
Há cerca de duas ou três décadas, especialistas já diziam que a corrupção e o exclusão nos conduziria ao quadro atual.
Lembro-me muito bem de tais alertas.

Pequenas ações defendendo que se rasguem as leis, como é o caso da defesa das execuções sumárias, podem ter consequências graves para a democracia do país. Aliás, já dizia Raymond Aron que “...o detonador da explosão não tem, necessariamente, a mesma ordem de grandeza da explosão.”
O discurso paranoico em dada situação de crise conduz ao medo coletivo e, consequentemente, ao anseio por “justiçamentos”, numa dada histeria coletiva e que nos distancia do Estado de Direito.
“Pode-se ver que o imaginário do medo, com raízes no real e propondo dele uma interpretação imaginaria, ‘retorna’, de certa maneira, ao real...mas para agir.”, como ensinou Jacques Semélin, ao detalhar ambientes fecundos para a explosão da violência e dos genocídios.

Para aqueles que defendem a extirpação das “ervas ruins” por meio de execuções sumárias e sem ofertar aos criminosos julgamentos sob as leis e a Constituição vigentes, sugiro nova e mais aprofundada reflexão.
Ou, assumam que são fascistas.
A propósito, a frase que inaugura esta reflexão foi proferida por Adolf Hitler.


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